Retirando da lama alimenta para alma.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Para que insistir na fragilidade de Deus?

O suicídio é o nó mais apertado de desatar da filosofia e da teologia.

Imaginemos um debate sobre os limites da liberdade humana em um auditório lotado. De um lado os deterministas insistem que a cultura, a genética e as forças econômicas não deixam ninguém ser livre. À esquerda, os existencialistas balançam a cabeça repetindo chavões sartreanos e dizendo que não existe essência humana. No centro, os teólogos agostinianos, dedo em riste, negam o livre arbítrio. No fundo, alguns niilistas gritam que humanidade só pode ser construída com mulheres e homens donos de seu destino. Aí, no meio desse bate-boca, um suicida se levanta, põe o cano de um revólver na boca e puxa o gatilho.

Naquele instante em que o maluco escolhesse acabar com a própria vida, alguns debatedores, perplexos, apenas se olhariam sem saber o que dizer.

De olhos esbugalhados, deixariam algumas perguntas sem resposta. O acontecido foi “escrito e determinado” por Deus quando o sujeito ainda era tecido no ventre de sua mãe? Deus teria predestinado aquela morte na eternidade passada? Havia outra mão cobrindo a que executou o gesto, ajudando ou, pior, empurrando o suicida para o abismo final? Quais forças sociais, genéticas ou instintivas o levaram ao tresloucado ato?

Camus estava certo. O suicídio é o nó górdio da teologia e da filosofia. Ele é o mais radical e mais completo exemplo do livre arbítrio, da não interferência divina nas escolhas individuais e, repetindo Sartre, de “estarmos condenados à liberdade”.

Se para Aristóteles, mulheres e homens se diferenciam dos animais por serem racionais, se para Descartes os humanos são mais excelentes por terem sentimentos, foi Rousseau quem fez da liberdade o componente determinante da humanidade que, na expressão que ele gostava de usar, também pode ser chamado de “perfectibilidade”.

Isso mesmo. Somos livres porque dispomos dessa capacidade de nos aperfeiçoar, ou nos destruir, ao longo da vida. Somente os humanos conseguem se libertar dos instintos naturais para construírem a história como um projeto em aberto.

Um cachorro que carinhosamente lambe a mão do seu dono não age por virtude, aquele gesto acontece sem que ele tenha qualquer noção de que poderia “preferir” mordê-lo. Contudo, quando um torturador arranca as unhas de um preso ou quando um marido espanca sua companheira, ele poderia, sim, "preferir" o contrário. Caso tivesse sido programado para agir, o crime seria inimputável, da mesma forma que um pit-bull que destroça uma criança não pode ser levado a um tribunal.

Liberdade significa agir sem ser empurrado, coagido, manipulado; uma ação só possui virtude ou perversidade se, na hora da escolha, também houver a possibilidade de se optar pelo seu oposto.

Teologicamente é possível afirmar que liberdade foi a maior dádiva que os humanos receberam de Deus. Com a liberdade, vem embutida a noção de que os humanos agem com virtude ou com vício. Existem fatos, eventos, designios, que não são coercitivos ou irresistíveis.

E mais, Deus só escolheu criar o mundo assim porque o propósito último da criação é o amor. Deus não criou por qualquer carência, ele não optou rodear-se de pessoas que pensam, criam, sentem e decidem porque obedecesse a alguém ou a alguma lei, ele criou na mais formidável de todas as gratuidades.

Ao criar seres com o objetivo relacional, Deus se expôs ao que jamais experimentaria caso nunca tivesse criado: dor e frustração. A liberdade humana é o limite (também o preço) que Deus se auto-impôs para concretizar seu amor nas mulheres e nos homens.

Esta fragilidade do amor divino pode ser bem compreendida tanto na história do profeta Oséias como na Parábola do Filho Pródigo. Nos dois exemplos, os amantes se vêem numa situação embaraçosa pelas opções tanto da mulher como do filho. Na parábola, o filho mais novo partiu e o pai nada pôde fazer a não ser esperar. Já o profeta foi obrigado a engolir seco a desdita de ter se casado com uma mulher leviana, que se prostituia com qualquer um. Mas como ele a amava, só lhe restava perdoar, esperando que a decisão de voltar fosse dela.

A liberdade humana também pode ser bem entendida se compararmos Deus a um imperador. Suponhamos que esse rei possuísse um harém com muitas mulheres, podendo dispor de qualquer uma. Contudo, imaginemos que um dia ele se apaixone por uma Sulamita.

Caso desejasse, bastaria uma ordem para ela ser trazida como objeto de prazer sexual. Mas esse monarca não deseja que seja assim, pois quer amá-la de verdade. Ele precisa conquistar seu coração para também ser dela. Assim, ao buscar amar, por mais poderoso e majestoso que seja, sua paixão o deixa vulnerável e indefeso.

Deus quer cativar seus filhos para querer bem e ser deles, eis a razão porque ele jamais forçaria que alguém o escolhesse – forçar e amar não combinam.

Para que dizer que Deus é frágil? Simplesmente porque ao insistir na fragilidade divina, entende-se melhor o seu amor; aprende-se a abrir mão da onipotência idólatra, para abraçar o Pai de Jesus Cristo. Falar da fragilidade divina significa buscar entender a força mais maravilhosa do universo que é o Agápe.

Não consigo acreditar numa divindade que tudo ordena, que tudo dispõe e que tudo orquestra. Realmente, eu não saberia amar um Deus que planejou, determinou e ajudou meu amigo Gustavo a se suicidar. Eu não conseguiria amar um Deus que, para promover sua própria glória, intencionou coisas horrendas como Aushwitz, Ruanda e Iraque. Não, Deus não guia a bala perdida que mata crianças nas favelas.

Não creio que ele tenha uma "vontade permissiva" que deixa que horrores se alastrarem para subrepiticiamente cumprir uma "vontade soberna". Não o percebo com começo, meio e fim da história prontos; ou que no presente esteja contente em administrar cada nano evento preordenado em sua providência.

Por isso, prefiro crer na fragilidade de um Deus que é amor. Prefiro aceitar que o mal não fez parte de seu projeto inicial e que Deus sofreu, e ainda sofre, com a morte de inocentes, com a injustiça econômica global e com as guerras mais estúpidas.

Não acho certo que confundam Jesus de Nazaré com o deus frio e distante dos gregos e dos deterministas, eis porque escrevo sobre sua fragilidade.

Soli Deo Gloria.


Autor: Ricardo Gondim

Fonte: http://www.ricardogondim.com.br/Artigos/artigos.info.asp?tp=61&sg=0&form_search=&pg=4&id=1384

Como nos tempos da Inquisição

Após defender o Estado laico e o reconhecimento jurídico da união homoafetiva em entrevista a CartaCapital no fim de abril (clique aqui para ler), o pastor Ricardo Gondim, líder da Igreja Betesda e mestre em teologia pela Universidade Metodista, virou alvo de ferrenhos ataques de grupos evangélicos na internet. Um fiel chegou a dizer, pelo Twitter, que se pudesse “arrancaria a cabeça” do pastor herege. “É como se vivêssemos nos tempos da Inquisição”, comenta Gondim, que já previa uma reação de setores do mainstream evangélico, os movimentos neopentecostais com forte apelo midiático. Surpreendeu-se, no entanto, ao ser informado que, graças às declarações feitas à revista, não poderia mais escrever para uma publicação evangélica na qual é colunista há 20 anos.

“Fui devidamente alertado pelo reverendo Elben Lenz Cesar de que meus posicionamentos expostos para a CartaCapital trariam ainda maior tensão para a revista Ultimato”, escreveu Gondim em seu site pessoal, na sexta-feira 20. “Respeito o corpo editorial da Ultimato por não se sentir confortável com a minha posição sobre os direitos civis dos homossexuais. Todavia, reafirmo minhas palavras: em um Estado laico, a lei não pode marginalizar, excluir ou distinguir como devassos, promíscuos ou pecadores, homens e mulheres que se declaram homoafetivos e buscam constituir relacionamentos estáveis. Minhas convicções teológicas ou pessoais não podem intervir no ordenamento das leis.”

Por telefone, o pastor explicou as razões expostas pela revista evangélica para “descontinuar” a sua coluna, falou sobre as ofensas que sofreu na internet e não demonstrou arrependimento por ter falado à CartaCapital em abril. “A entrevista foi excelente para distinguir algumas coisas. Nem todos os evangélicos pensam como esses grupos midiáticos que confundem preceitos religiosos com ordenamento jurídico e querem impor sua vontade a todos.”

CartaCapital: Qual foi a justificativa dada pela revista Ultimato para descontinuar a sua coluna na publicação?
Ricardo Gondim:
Eu escrevi para a Ultimato por 20 anos. Trata-se de uma publicação evangélica bimensal, na qual eu tinha total liberdade para escrever sobre o que quisesse. Não falava apenas da doutrina, mas de muitos assuntos relacionados ao cotidiano evangélico. E nunca sofri qualquer tipo de censura. Mas, agora, eles entenderam que as minhas declarações a CartaCapital eram incompatíveis com o que a Ultimato defende e expuseram três argumentos para justificar a decisão. Eu não concordo com essas teses e, para dar uma satisfação aos leitores, publiquei uma carta de despedida no meu site (www.ricardogondim.com.br).

CC: A defesa dos direitos civis de homossexuais foi um dos aspectos criticados pelo corpo editorial da revista?
RG
: Sim. Eles entendem que o apoio à união civil de homossexuais abriria um precedente dentro das igrejas evangélicas para a legitimação do ato em si, a homossexualidade. Tentei explicar que uma coisa é teologia, outra é o ordenamento das leis. Num Estado é laico, não podemos impor preceitos religiosos à toda a sociedade. Uma coisa não transborda para a outra. Dei como exemplo o fato de a Igreja católica viver muito bem em países que reconhecem juridicamente o divórcio, embora ela condene a prática e se recuse a casar pessoas divorciadas. Eu não fiz uma defesa da homossexualidade, e sim dos direitos dos homossexuais. O direito deve premiar a todos. Num Estado democrático, até mesmo os assassinos têm direitos. Não é porque eles cometeram um crime que possam ser torturados ou agredidos, por exemplo. As igrejas podem ter uma posição contrária à homossexualidade, mas não podem confundir seus preceitos com o ordenamento jurídico do país ou tentar impor sua vontade. Muitos disseram que o Supremo Tribunal Federal tripudiou sobre as igrejas evangélicas ao reconhecer a união estável homoafetiva. Nada disso, o STF estava apenas garantindo os direitos de um segmento da sociedade. Essa é sua função.

CC: Quais foram os outros aspectos criticados?
RG:
Eles também criticaram uma passagem da entrevista na qual eu contesto a visão de um Deus títere, controlador da história e da liberdade humana, como se tudo que acontecesse de bom ou ruim fosse por vontade divina e ou tivesse algum significado maior. E apresentaram um argumento risível: o de que a minha tese coloca em xeque a ideia de um Deus soberano. Claro que sim! Deus soberano é uma visão construída na Idade Média, e serviu muito aos interesses de nobres e pessoas do clero que, para justificar seu poder, se colocavam como representantes da vontade divina na terra. Só que essa visão é incompatível com o mundo de hoje. O Estado é laico. As pessoas guiam os seus destinos. Deus não pode ser culpado por uma guerra, por exemplo. Não vejo nisso nenhuma expressão da vontade divina, nem como punição.

CC: O fato de o senhor ter criticado a expansão do movimento evangélico no País também foi destacada?
RG:
Sim. Eu fiz um contraponto à tese de que o Brasil ficará melhor com o crescimento da comunidade evangélica. Não acho que é bem assim. Critica-se muito a Europa pelo fato de as igrejas de lá estarem vazias, mas eu não vejo isso como um sinal de decadência. Ao contrário, igreja vazia pode ser sinal do cumprimento de preceitos do protestantismo se os cidadãos estão mais engajados com suas comunidades, dedicados às suas famílias, preocupados com os direitos humanos, vivendo os preceitos do cristianismo no cotidiano. Eu critico essa visão infantilizadora da vida, na qual um evangélico precisa da igreja para tudo e Deus é responsável por tudo o que acontece.

CC: O senhor se arrepende de ter concedido aquela entrevista à CartaCapital?
RG:
De maneira alguma. O repórter Gerson Freitas Jr. até conversou comigo, preocupado com a reação que as minhas declarações poderia causar na comunidade evangélica. Mas a entrevista foi excelente para distinguir algumas coisas. Nem todos os evangélicos pensam como esses grupos midiáticos que confundem preceitos religiosos com ordenamento jurídico e querem impor sua vontade a todos. Eu já esperava alguma reação, só não sabia que viria com tanta virulência. Um evangélico chegou a dizer, pelo Twitter, que se pudesse arrancaria a minha cabeça. É como se vivêssemos nos tempos da Inquisição. Recebi inúmeros e-mails com ofensas e mensagens de ódio. Não sei precisar quantos, porque fui deletando na medida em que chegavam à caixa postal. Também surgiram centenas de textos me satanizando em blogs, sites e redes sociais.

CC: E entre os fiéis da sua igreja? Houve algum constrangimento?
RG:
Alguns, influenciados pelo bafafá na internet, vieram me questionar. Então fiz questão de dar uma satisfação à minha comunidade. Após discursar, acabei aplaudido de pé, fiquei até meio constrangido diante daquela manifestação de apoio.

Observação: Todos os comentários no site da CartaCapital estão submetidos a moderação. Não serão tolerados textos ofensivos, de teor preconceituoso ou com acusações injuriosas.

Autor: Rodrigo Martins

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/como-nos-tempos-da-inquisicao